MEMÓRIAS DE UM CARNAVAL NOS ANOS 60
Já que a gente não pode andar por aí a fazer travessuras,
deixo aqui a memória de um dia de Carnaval, acontecido na década de sessenta do
século XX, quando o Liceu era no velho Convento de S. Francisco, na então Rua João
de Deus.
De caminho, recordo um reitor memorável e uma professora (de
que deixarei escondido o nome, porque ainda é viva).
O Carnaval já estava na sua segunda ou terceira semana
quando alguém se lembrou - nunca soubemos quem - de partir uma bombinha de mau
cheiro (uma absolutamente malcheirosa fona de porca) debaixo da cadeira da
professora.
Ela entrou, connosco respeitosamente de pé, cada um na sua
carteira, e, avançando um pouco, percebeu o que sucedera. Deu meia volta, muito
séria, e, com o gelo da fúria nos olhos, exclamou: “Vou dizer ao Senhor
Reitor!”, e saiu.
A sala, para os que andaram por lá, ficava num corredor do
primeiro andar, depois de virar à direita, a meio, entrando-se por uma arcada
que ainda lá está, por sinal. O tempo era o de “antes do 25 de Abril” e devo
dizer que alguns de nós sentiram um calafrio, pois a possibilidade de um
processo disciplinar, com eventual suspensão ou expulsão, era muito real.
Passados uns minutos, chegou o Reitor, Dr. Eliseu Pereira
Pato François, e o chefe dos contínuos, o Senhor Moreira.
O Reitor tinha uma voz nasalada e, ao chegar, ordenou, em
voz bem sonora, “Ó Moreira, fecha as janelas e, ao sair, fecha a porta à chave.
Quando tocares para fora, vem abrir…, Obrigado!” e sentou-se, na cadeira, com o
cheirinho mesmo debaixo dele.
Com o seu carácter calmo e o muito bom humor que era seu apanágio, levantou os olhos para nós e disse: “Podem sentar-se.”.
“Meus senhores, devo dizer-vos que, porque fui fumador
durante muitos anos, perdi o olfacto. Isto – e apontou para o chão – não me
incomoda.”.
Com essa disposição, sempre sorridente, e connosco cada vez
mais zonzos, iniciou uma longa aula de Química – ele era dessa área – chamando,
ora um ora outro, ao quadro, para escrever as fórmulas. E foi o ácido
clorídrico, o tal que cheira a fona de porca, um outro que cheira a morrinha de
cão (de que não lembro o nome), e mais umas quantas pérolas de perfume, cada
qual bem explicado e, cada um, cuidadosamente anotado a giz, no quadro, por um
aluno, comparando fórmulas, explicando métodos de produção, com vagar,
pormenores curiosos, aplicações práticas possíveis, ou cuidados a ter.
Ele, pachorrento, ia desfiando coisas, e nós, porque o
cheiro permanecia, bem vivo, ensombrando as explicações e complicando as
mentes, só ansiávamos por sair dali.
Finalmente, tocou a sineta do canto do claustro, e o Senhor
Moreira veio abrir a porta. Levantando-se, sorridente, Pato François encerrou a
aula cumprimentando todos e dizendo um claro e sonoro “Bom dia! Espero que
tenham gostado de saber!”. E foi, corredor fora, trocando algumas palavras com
o chefe dos contínuos.
Nunca mais houve bombinhas de mau cheiro nas salas, que me
lembre, e nunca mais se ouviu falar de um possível correctivo disciplinar. O
Reitor resolvera o assunto, a seu modo, com penalização e tudo, e, eu pelo
menos, fiquei com esta fantástica recordação de um momento pedagógico excelente
em tempo de Carnaval.
(Publicado, em forma impressa, na "Vela de Estai", Diario Insular, de 6.2.2021)