O PESO DA OBRIGAÇÃO DA MODERNIDADE

 


O estabelecimento humano que dá pelo nome de Angra do Heroísmo fez, em Agosto de 2020, 486 anos.

Foi o segundo povoado português, criado fora do território ibérico e na dinâmica da expansão marítima, a ser elevado a cidade, curiosamente no mesmo dia 21 de Agosto, tal como o Funchal havia sido, 26 anos antes.

Se comemorar é trazer à memória e recordar é trazer para junto do coração, vale a pena, sempre, deixar em cima da mesa de festa alguma nota positiva.



Neste ano de Covid 19, nesta altura em que aviões deixam de passar pelas Lajes, quando a maioria da capacidade de decisão deixou de viver nas suas ruas, talvez valha a pena, creio, voltar a lembrar que a História, a que importa revisitar, vive dos movimentos longos, aqueles que Braudel apelidou de Períodos de Longa Duração. O mesmo Braudel que se encarregou de integrar num mesmo todo, gente, território, geografia, clima, etc.

Olhando assim as coisas e para o que nos interessa, poderemos encontrar, creio em absoluto, sugestões de vida, de visão, de futuro. Definitivamente melhores que o olhar curto, servil, doentio e fraco, que por cá anda demasiadas vezes.

Desde que as ilhas existem e o Monte Brasil também - vinte mil anos se tanto, dizem os geólogos - mesmo antes de haver gente por cá, quando eram os cocos e as favas do mar a arribar à ilha, vindos no fluir da  Corrente do Golfo, que as ilhas dos Açores, porventura mais as do grupo central e ocidental, se habituaram a ver chegar e partir.

Também desde que as ilhas existem, e mesmo tendo em conta as diversas modificações e acrescentos vulcânicos, partilhamos elementos do coberto vegetal do planeta, seja o Perrexil, desde o Mar Negro, ou os Cubres, viçosos e amarelos, desde a costa leste da América do Norte.

Angra – a cidade e a baía – seriam muito pouco se não tivesse existido, pelo menos desde o século XVI, uma apetência enorme por minérios preciosos, por temperos refinados, por madeiras fabulosas, por tudo o que, sendo embora trabalhoso transportar por mar, motivou cruzamentos e múltiplas viagens.

Os Açores, o grupo central, Angra, primeiro e, depois, Horta e Angra, mais tarde, nunca foram o centro de coisa alguma, para o que interessa da tal grande História de Braudel. Se existem mapas, cartas e gravuras representando Angra – e Horta, e, mais tarde Ponta Delgada, mas menos – não é por ser ou ter sido capital de distrito ou, até, sede da Capitania Geral e “Capital dos Assores”. É porque por aqui passavam dinâmicas do Mundo, descuidadas da nossa pequenez, mas influenciando um modo de viver e ver as coisas que, depois de quase cinco séculos, acabou por ficar no nosso ADN de comunidade humana.

Acho que já escrevi que as Lajes foram, para a segunda metade do século XX e inícios do XXI, na Terceira, o mesmo que Angra foi, para a segunda metade do XVI e inícios do XVII. Uma janela sobre o Mundo, um modo de fazer passar por cá apontamentos dessas dinâmicas globais.

Não fosse isso e teríamos de nos contentar com o facto de saber que toda a ilha Terceira, junta, não enche o estádio do Benfica ou que todos os Açores, juntos, cabem perfeitamente nos diversos estádios da capital portuguesa.

Angra precisa ter uma visão de futuro baseada no facto de ter sido, sempre, não o centro de alguma coisa, mas plataforma participante – e em algumas ocasiões relevante – de dinâmicas muito maiores. Lugar de encontro, de passagem, de troca de novidades, de capacidade de saber misturar e criar elementos dialogantes entre passado e futuro.

(segundo o texto publicado, no Diário Insular “Vela de Estai”, em 22 de Agosto de 2020)