"OS MAIAS" ROMANCE COM LAIVOS RACISTAS?
Uma pessoa começa a ficar farta! FARTA!
Se entendermos que, quando se escreve, diz, ou fala, de preto ou de negro, se está a falar de gente de pele castanho muito escuro, habitualmente designados de negros ou pretos, ainda seria capaz de admitir esta ideia, como princípio de conversa.
Porém, o que acontece, aqui, é um afunilamento da mente, difícil de aceitar.
Temos a noite, que é escura, tal como o interior das cavernas não iluminadas. Lugares onde falta luz, branca habitualmente, ou pelo menos claramente clara. São zonas de medo, porque nos impedem, mais frequentemente, de ver, do que quando há excesso de luminosidade, porque os nossos olhos são como são e o desconhecido, que não se vê, faz medo.
Se quiser significar a dor que me vai na alma falo em negrume, porque me falta a luz, acho natural e isso é naturalmente assim desde a antiguidade e o Hades.
Associar todos estes modos de sentir e ver, com milénios de existência e miríades de exemplos pictóricos, poéticos ou filosóficos ao racismo é, para mim, pelo menos, profundo exagero.
Se não é, então que me digam como poderei significar todo esse enorme conjunto simbólico de outro modo?
Se entender que o amarelo é desespero e o vermelho paixão, será que estarei a afirmar que todos os chineses são desesperados e os índios americanos todos apaixonados?
Se não puder usar cores faço como, escrevo como, pinto como, descrevo o que sinto como?
Daqui a dias serei considerado racista se só me vestir de claro, como beije ou cinzento muito leve, cores de que, por acaso gosto, porque me fazem sentir isso mesmo: leve.
Conheci um moleiro que caiava o interior do seu moinho de rosa velho, pela simples razão que a farinha era branca e precisava de reconhecer esse tipo de sujo, nas paredes... Lá está, aí o branco é o sujo e o rosa o limpo...
Enfim, foi um desabafo. Grande demais, talvez, mas isto está a passar todas as marcas. Uma ditadura do gosto e do pensar muito mais dura e inquietante que a Inquisição, como era vista pelos olhos do século XIX, pois nem o foi assim tanto, na maioria dos casos, na vida real, como se percebe pelas caixas e caixas de documentos arquivados.
Aqui o texto que motivou o desabafo:
Uma doutoranda da Universidade de Massachussets Dartmouth, nos Estados Unidos, proferiu uma palestra online sobre o tema “São os Maias de Eça de Queiroz um romance racista?”.
Publicada em 1888, ‘Os Maias’ é uma das obras mais conhecidas do escritor português Eça de Queiroz. O livro ocupa-se da história de uma família ao longo de três gerações, centrando-se depois na última, com a história de amor entre Carlos da Maia e Maria Eduarda.
A oradora explica ter lido a obra de Eça de Queiroz à luz dos estudos raciais e que, desta forma, ‘Os Maias’ associavam a dicotomia branco/negro à civilização ou selvajaria e revelariam uma desmedida preferência pela ‘brancura’.
De acordo com um texto de Carlos Maria Bobone, publicado no jornal Observador, a doutorada norte-americana defendia que a obra era exemplo de alguém “que perpetua sem consciência os estereótipos que legitimam e permitem a propagação do racismo”.
“É claro que a ideia a que o racismo inconsciente leva, de que só pode haver anti-racistas ou racistas, é perigosa; mas se além de perigosa for verdadeira, então a pergunta sobre se os Maias são racistas é inútil. ‘É Os Maias um romance escrito em Português?’ é, se assumirmos que há racismo inconsciente, uma pergunta com o mesmo nível de complexidade”, escreve o autor do texto.
A oradora explica que ao longo do livro, há uma associação, na linguagem do narrador, entre a cor preta ou a escuridão e ideias ou sentimentos negativos. Pedro da Maia tem “crises de melancolia negra” e os olhos de Maria Monforte parecem “negros de cólera”, por exemplo.
Há ainda uma “escada escura e feia” e quartos “alegres, forrados de papéis claros”. A palestrante identifica ainda várias passagens em que a brancura está associada à beleza feminina.
“O problema destas leituras contextualizadas, que assumem que se traz mais riqueza a um texto se ele for lido a partir de um ponto de vista, está no facto de ser sempre possível encontrar aquilo que queremos, embora seja difícil com isso darmos uma ideia da dimensão do assunto”, defende Carlos Maria Bobone, dando exemplos contrários aos sugeridos pela palestrante, como os belos cabelos negros da filha de Maria Eduarda e a palidez pouco saudável do Eusebiozinho.
“A lente aproximada para um problema não traz contexto, retira-o, e esse é o maior problema da leitura sobre o racismo de Os Maias”, acrescenta.
Daniel Costa, ZAP //