UM CONTADOR ESGRAFITADO E A COVID-19 / A SCRIBBLED CONTADOR AND THE COVID-19


Quando este coitado apareceu à venda, não era nada disto, ou, melhor dizendo, era tudo isto, mas bastante escondido. Estávamos em 2012 e a terminar o projecto, para depois da aposentação, chamado "Quinta do Espirito Santo - Turismo de Habitação".



Tinham sido uns cinco anos bem puxados, a resolver, a escolher, a pensar nos prós e contras de cada opinião e, um dia, no meio da conversa sei que apareceu um contador à venda, em Lisboa. 

As dúvidas sobre as coisas demoram tempo a desvanecer-se e, no caso do mobiliário de decoração incisa ou esgrafitado, produzido em Angra, entre os séculos 16 e 17 elas eram muitas, agora são menos, mas tudo o que se possa arranjar pra consolidar o saber, nunca é demais.



Apresentado como açoriano e de cedro do mato (Juniperus brevifolia), acabou por ser a oferta de minha mulher a nós os dois - mais um bocadinho a mim, tenho de reconhecer e agradecer, por isso - para rematar o projecto e ficar no salão, podendo servir de tema de explicações várias a quem aparecesse interessado.

Quando digo escondido é porque, de facto, tinha portas acrescentadas, ainda por cima a fecharem em meia madeira, puxadores de cozinha a meio de cada porta ou  frente de gaveta, e já nem as fechaduras existiam, substituídas por um pedaço de papel a segurar os rolhos de cera, das entradas das chaves. Se alguns elementos tinham sido, claramente, acrescentados, por outro lado faltavam-lhe claramente, alguns outros, como a porta e a moldura superior.

Acrescente-se a tudo isso uma boa colónia de caruncho - sim porque o cedro do mato também apanha caruncho - e ficarão a perceber até que ponto o coitado precisava de carinho, cuidado e procura de informação para não se cair em fantasias restaurativas, de todo desaconselháveis.


Havia, no entanto - há sempre um "no entanto", nestas coisas - uma característica que justificava todo o interesse na peça: alguns fundos são decorados, coisa desconhecida até então.

Felizmente apareceu um contador muito parecido, num catálogo de antiquário, que fora vendido há uns dois anos. O trabalho, embora facilitado, demandava, agora, mais cuidado, para a gente não embandeirar em arco. Havia, sempre, que comparar e verificar, semelhanças e diferenças, numa espécie de arqueologia comparada.


Passaram-se anos, entre conversas demoradas de várias horas, telefonemas e mensagens electrónicas com fotografias, entre mim e o técnico de restauro, desmontagem de certas partes, retirada de outras partes, estudo de peças semelhantes, a ver se se percebia como seria ou como não seria "esta parte aqui, ou aquilo ali". 



Devagarinho, tirando acrescentos, sempre com cuidado e devagar, as coisas foram-se compondo e a peça começou a aparecer e a ficar com cara de gente. Quando não se sabia parava-se ... até se saber.

Finalmente, em plena crise da Covid-19, tudo ficou terminado e o contador ganhou o lugar que o aguardava, há anos.

O contributo que traz para a "causa do mobiliário de decoração incisa, feito nos Açores e em Angra" é muito interessante, por um pormenor, nada despiciendo: As molduras são de sanguinho (Frangula azorica V. Grubow)

Onde é que está o interesse? No facto de o sanguinho ser uma madeira endémica dos Açores, geralmente de porte médio, habitualmente usada decorativamente em mobiliário ou em embutidos, mas de que não se conhece exportação em bruto. Ou seja, o contador tem elementos que consolidam a tese da feitura nos Açores, apoiando as indicações de Pompeo Arditi (1567) e de Gaspar Frutuoso (c.1590).

Obrigado à minha mulher e a todos os que me ajudaram.

--------------------

When this poor guy came up for sale, it was none of this, or, rather, it was all of this, but quite hidden. We were in 2012 and finishing the project, for the after-retirement life, called "Quinta do Espírito Santo - Turismo de Habitação".

It had been a hard five years, resolving, choosing, thinking about the pros and cons of each opinion, and one day, in the middle of the conversation, I know that a Contador appeared for sale in Lisbon.

The doubts about things take time to fade and, in the case of the incised or graffiti decoration furniture, produced in Angra, between the 16th and 17th centuries they were many, now they are less, but everything that can be arranged to consolidate knowledge is never too much.

Presented as Azorean and cedarwood (Juniperus brevifolia), it ended up being my wife's offer to both of us - a little more to me, I have to acknowledge and thank, for that - to finish the project and stay in the salon, and it can serve as a topic of various explanations to anyone who appears interested.

When I say hidden, it is because, in fact, It had doors added, some of them that closing in half wood, kitchen handles in the middle of each door or front of a drawer, and even the locks didn't exist anymore, replaced by a piece of paper to hold the wax plugs applied on the key entries. If some elements had clearly been added, on the other hand it clearly lacked, some others, such as the door and the upper frame.

Add to all that a good colony of wood caruncle - yes because the cedro do mato also catches wood caruncle - and you will understand how much the poor thing needed affection, care, and search for information so as not to fall into restorative fantasies, at all inacceptable.

There was, however - there is always a "however" in these things - a feature that justified all the interest in the piece: some backgrounds are decorated, something unknown until then.

Fortunately, a very similar contador appeared in an antique catalogue, which had been sold some two years ago. The work, although facilitated, demanded, now, more care, for us not to flag in arc. There were, always, to buy and verify, similarities and differences, in a kind of comparative archaeology.

Years passed, between long conversations lasting several hours, phone calls and electronic messages with photographs, between me and the restoration technician, disassembly of certain parts, removal of other parts, study of similar parts, to see if it was perceived as it would be or as it would not be "this part here, or that there".

Slowly, dismounting additions, always carefully and slowly, things began to compose and the piece began to appear and look like a people. When you didn't know, you stopped ... until you knew.

Finally, in the midst of the Covid-19 crisis, everything was over and the accountant won the place that had been waiting for him for years.

The contribution he brings to the "cause of decorative furniture made in the Azores and Angra" is very interesting, in one detail, nothing short of it: The frames are made of sanguinho (Frangula azorica V. Grubow)!

Where is the interest? In the fact that the little sanguinho is an endemic wood of the Azores, generally of medium size, usually used decoratively in furniture or inlaid, but that raw export is not known. In other words, the contador has elements that consolidate the thesis of the Azores production, supporting the indications of Pompeo Arditi (1567) and Gaspar Frutuoso (c.1590).

Thanks to my wife and everyone who helped me.